sábado, 28 de maio de 2011

Charlie Brown e sua turma



A 2 de Outubro de 1950, os "Peanuts" faziam a sua estreia, algo tímida, como tira diária, nas páginas do “Saturday Evening Post”, mas a breve trecho eram já publicados nos principais jornais norte-americanos, e passariam a ter também prancha dominical a partir de 6 de Janeiro de 1952, para, no seu auge, serem lidos diariamente por mais de 350 milhões de leitores de 2600 jornais de todo o mundo. O arranque daquela que se iria tornar numa das mais conhecidas séries da história da banda desenhada, tinha acontecido dois anos antes no "Saint Paul Pioneer Press", então sob o título de "Li'l Folks" (gente pequena).
No início, os "Peanuts", eram cinco: dois rapazes, Charlie e Shermy, duas raparigas, Patty e Violet, e um cão, Snoopy. Shermy, Patty e Violet foram desaparecendo pouco a pouco, enquanto Charles Schulz, o seu autor, entregava o protagonismo a Charlie Brown, um eterno perdedor, e ao seu cão Snoopy, contraponto da melancolia e tristeza e futura consciência crítica do grupo.
Graficamente, a série estava distante daquilo que conhecemos hoje e que a distinguiu de muitas outras mas, entre 1951 e 1953, Schulz depurou o seu grafismo, dando relevo às personagens em detrimento do cenário, quase só esquissado em pinceladas largas, e fazendo antever uma das características que o notabilizaram: a capacidade de fazer os seus heróis expressar emoções apenas com uns quantos elementos gráficos. Na mesma época introduziu na série três das suas futuras estrelas; Schroeder, um virtuoso do piano, Lucy, a eterna insatisfeita, egoísta, egocêntrica e autoritária, e Linus, um sobredotado, o intelectual do grupo, que combate as neuroses chupando no polegar e sempre agarrado ao seu cobertor.
Com o passar dos anos, Schulz aprofunda o perfil psicológico de cada um, e acrescenta ao grupo Sally, a irmã de Charlie Brown, Woodstock, o passarinho, ajudante de Snoopy, os irmãos deste último e outros. Com eles, e com base no princípio do "running gag" (em que cada uma das situações se inspira na tira precedente, para se concluir, por vezes, na seguinte), foi dissertando sobre a condição humana de uma forma divertida e amarga, ao mesmo tempo simples e profunda, capaz de a tornar acessível a crianças, embora só integralmente compreendida pelos adultos. Para isso, utilizou situações recorrentes que se tornaram momentos antológicos dos "Peanuts", como a total inépcia de Charlie Brown para praticar futebol americano, brincar com papagaios de papel ou declarar-se à misteriosa Rapariga Pele-Vermelha, as consultas psicanalíticas de Lucy, as festas de aniversário, as fantasias de Snoopy como Ás da Aviação da Primeira Guerra Mundial, o Mito da Grande Abóbora ou as interpretações de Snoopy dos tracinhos que representam a fala de Woodstock, estas últimas em momentos de puro non-sense que Schulz também cultivou nos "Peanuts".

O jeito de ser de Charlie Brown mostra que apesar da timidez explícita há uma curiosidade pulsante da realidade que o cerca. O garotinho fracassado que não consegue arrumar uma namorada sequer nem jogar bem na liga de beisebol carrega consigo algumas das verdades que mais nos atormentam: o medo de enfrentar a própria vida. Medo, ansiedade, agonia e algumas vezes um riso largo de crença num mundo melhor.

Uma vez, Schulz disse em uma entrevista; "os ‘Peanuts’ são a minha vida inteira. Todos os dias lhes dei um pouco de mim”. E não teria como ser diferente. Em toda obra de arte encontramos sempre um pouco do autor... No Brasil, os Peanuts ficaram conhecidos como Minduim, apelido dado a Charlie Brown ou simplesmente “as tirinhas do Snoopy”. Extremamente psicólogico, apesar de Schulz não se referir a isso de maneira explícita, as tirinhas de Minduim alcançaram o mundo e conquistaram gerações de fãs. Bill Waterson, criador de Calvin & Haroldo, se diz um apaixonado por Charlie Brown e toda a sua turma.


Entre as personagens da série criada por Schulz temos o “bom e velho” Charlie Brown, sempre de cabeça baixa e as mãos no bolso e Sally, a irmã mais nova de Charlie Brown que ele tenta deseperadamente compreender e que vez por outra o humilha também. Sally é apaixonada por Linus, uma criança que tem boas sacadas filosóficas. Linus Van Pelt apresenta nas tirinhas um paradoxo: tem uma filosofia de vida surpreendente, conhece muitas coisas apesar da pouca idade, mas vive grudado em um cobertor azul chupando o dedo. O que apresenta um perfil psicológico um tanto quanto ainda debilitado. Linus é o irmão mais novo da representação feminina da repressão: Lucy, a personagem mais mal humorada das séries das HQs. Mandona e chata, Lucy vive se metendo na vida de todos. Dá conselhos para os amigos, mas na verdade ninguém os pediu. Os conselhos dados a Charlie Brown são cobrados na barraquinha de psiquiatria montada por Lucy porque para o Charlie Brown nada é de graça. E ele sabe que a vida tem lá as suas dificuldades... Lucy incurtiu na cabeça do pobre Charlie Brown que ele precisa de conselhos médicos e tratamento psicológico... tsc, tsc. E ele acreditou. Lucy tem uma paixãozinha secreta por Schroeder, o artista da turma. Talvez a inteligência seja mesmo algo afrodisíaco... Ou seja, um dos seus pontos fracos é o amor. (Mas de quem não é, não é mesmo?) Schroeder é um músico que vive em um mundinho particular. De lá, tira melodias maravilhosas de um pianinho de brinquedo tentando em vão não interagir com um mundo real que lhe é apresentado toda vez que Lucy chega lhe pedindo em casamento... Na visão de alguns filósofos e pensadores, Schroeder pode ser considerado um artista que se refugiou na arte para não ter que fazer contato com a realidade, pois Schroeder tem uma personalidade um tanto quanto fechada em si mesmo... A sua mais forte relação com o mundo se dá apenas pela paixão que ele sente por Bethoveen. Há ainda outros personagens como a Patty Pimentinha e a Marcie que são grandes amigas e o Woodstock, um passarinho amarelo amigo de Snoopy que tem até um dialeto próprio grafado em pontos de exclamação. Esse dialeto só é entendido por Snoopy, que conversa mentalmente com Woodstock. Temos qui um dos pontos altos da HQ de Schulz: o cão Snoopy, sua relação com o mundo e com o seu dono Charlie Brown. Se traçarmos um paralelo entre Charlie Brown e Snoopy temos duas personagens com características bem distintas: uma extremamente existencialista, na busca constante por si mesma (Charlie Brown) e outra completamente despida de consciência, buscando viver apenas o hoje da maneira mais interessante possível (Snoopy). Snoopy não sabe o nome de Charlie Brown, só o reconhece por ser “o garoto de cabeça redonda que leva comida para ele”. Snoopy representa a fantasia que “deveria” estar presente nas personagens que permeiam a tirinha e nos próprios seres humanos. Na verdade, transformamos essa fantasia em trabalho e em falta de tempo e nos esquecemos, muitas vezes, de viver plenamente, ou até mesmo de sonhar. Com a possibilidade de ser quem quiser, Snoopy uma hora é escritor com sua própria máquina de escrever, da qual tira textos maravilhosos de cima de sua casinha de cachorro. Outra hora é um aviador da segunda guerra fazendo referência direta aos fatos acontecidos com o próprio Schulz que teve que lutar na Segunda Guerra Mundial. Em entrevista, diz o desenhista que ter que ir pra guerra foi bom, pois voltou com menos medo e mais expansivo. Veja que ele até casou depois que voltou da guerra. Uma dádiva para quem se sentia um fracassado... Snoopy tem em si a possibilidade da existência por completo, já que é um cão e não tem preocupação humana, apesar de agir como humano muitas vezes e em algumas tirinhas até mesmo andar sobre duas pernas. Snoopy não fala, mas pensa. E muito. Muitas vezes parece pensar alto, o que deixa Lucy extremamente irritada. Snoopy vive o presente sem se cobrar de ser alguém melhor ou ter crises existenciais. O que é espantoso, ou melhor, paradoxal para um cachorro praticamente humano.... Já Charlie Brown ainda não sabe o que está fazendo no mundo. E talvez seja isso o mais encantador na personagem. Constantemente em busca de si mesmo, se perde em dúvidas e pensamentos, mas não deixa de ser criança e algumas vezes ter espasmos de alegria ao sentir paixão por uma garota ruiva ou quando consegue fazer algo superando suas próprias expectativas. Devemos, entretanto, refletir sobre outras personagens do mundo das histórias em quadrinhos para compreendermos a dinâmica presente em “The Peanusts”: Calvin é aquela criança ativa, cheia de imaginação que troca altas idéias com seu tigre de pelúcia, o Haroldo, sendo que só ele, o próprio Calvin, vê o tigre como um ser vivo. Mafalda é uma socióloga mirim. Raramente a vemos brincando como uma criança qualquer por que ela está sempre preocupada com a situação do mundo, hora é uma apocalíptica hora é uma integrada aos fatos da realidade. Charlie Brown mistura as duas personalidades anteriores em uma criança que parece ter dentro de si, um adulto. Não por suas idéias, mas por suas neuroses diante do mundo e diante de si mesmo. Ele brinca tanto quanto Calvin, mas é reflexivo também, assim como Mafalda. Imagina se pudéssemos ter os três juntos em uma mesma história? Iria ser surreal... Pois bem, voltemos. “The Peanuts” trazem em si um contexto psicológico humano de maneira tão explícita, que nos incomoda. Vemos-nos reconhecidos nos atos e ações das personagens e nos apaixonamos por eles, ou melhor, por nós mesmos, pelo nosso espelho, mas não conseguimos nos rever. Através da turma do Minduim descobrimos realmente quem somos. E mesmo assim, não conseguimos mudar. Isso é monstruoso. Considerações à parte sobre quem é e como se portam os “The Peanuts” no mundo das histórias em quadrinhos e no contexto psicológico, temos que admitir que todos eles são apaixonantes e cativantes. Charlie Brown está na sua infância e também nos espelhos espalhados pela sua casa


Foi com estes elementos que manteve os "Peanuts" durante quase 50 anos, sempre sozinho, recusando trabalhar em estúdio ou aceitar que outros prosseguissem a sua obra após a sua morte, que viria a acontecer a 12 de Fevereiro de 2000, exactamente da véspera da publicação da última prancha dos "Peanuts" que desenhou, que termina com a frase "Charlie Brown, Snoopy, Linus, Lucy… como é que alguma vez os poderei esquecer…".





Um comentário:

Entre as melhores 4 paredes disse...

Gostei muito de sua postagem. O conteúdo muito bem escrito, de modo a nos transportar à infância e para dentro de si mesmos. Buscava a interpretação da personalidade da Patty Peppermint... que não encontrei aqui, mas, gostaria de registrar que gostei muito do conteúdo que encontrei. :)