Hermano Vianna - Pós-indignação
Interessante perceber a coincidência, quando abri os jornais do dia 18: na “Folha de S. Paulo”, Marcelo Coelho escreveu brilhantemente sobre a moda do politicamente incorreto e, aqui no Segundo Caderno, Francisco Bosco lançou seu manifesto “tô fora” contra a busca desesperada, cada vez mais dominante em certo debate de ideias nacional, por polêmicas. Há tempos eu planejava um texto semelhante, comentando o mesmo fenômeno, pois considero os sucessos tanto do “politicamente incorreto” quanto das “polêmicas” sintomas de um problema mais profundo e triste.
Já esbarrei nesse assunto quando citei outra coluna da “Folha”, de Contardo Calligaris: “Ora, a indignação é a forma mais barata de inteligência: ela substitui a complexidade pela irritação dos humores.” Claro, conheço também o sucesso que o livro francês “Indignai-vos”, de Stéphane Hessel, tem feito mundo
afora. E sei que, no Brasil, há motivos de sobra para ficarmos indignados. Mas indignação não basta por si só, nem pode ser pensada como finalidade da ação política/ moral. Ela só faz sentido se for o início da ação, que crie soluções e novas maneiras de transformar o mundo. Quem abre o Twitter, ou quem lê cartas de leitores dos jornais, pensa que o Brasil é terra de indignados. Mas isso não quer dizer politização. A indignação brasileira atual muitas vezes é apenas o exercício da maledicência. Um jogo bobo: sou mais corajoso, nado contra a maré, pois falo mal de todo mundo. E tudo fica como era antes.
Há cada vez mais seminários e mesas redondas no Brasil. Muitos organizadores são bem-intencionados. Contudo, o espírito denunciado por Francisco Bosco (ele citou a seguinte recomendação de um mediador:
“Podem polemizar, detesto mesas em que há consenso, em que todos dizem a mesma coisa”) realmente anda impedindo que os debates se tornem produtivos, ou mesmo surpreendentes. Ninguém discute nada, ou aprofunda nenhuma “questão”. A moda é a do show indignado: o expositor abusa do estilo bombástico já testado com outras palestras, falando mal de qualquer “poderoso”. A plateia adora. O efeito é catártico. Apaziguador. Bater palmas é suficiente, dever cumprido. Não é preciso fazer mais nada, além dessa manifestação barulhenta de indignação “solidária”. Então, bater palmas funciona, no final das contas, como lavar as mãos: o que vem daqui para a frente não tem nada a ver conosco, é coisa para os políticos decidirem e cuidarem por nós. A indignação se torna o caminho mais fácil. Ninguém quer saber de discursos complexos, argumentações entediantes para se acompanhar, levando em conta pontos de vistas diferentes. O público fica contente com slogans pseudorrevolucionários, com tiradas engraçadas,
com frases destemperadas, do contra. A simplificação dá conta do nosso negócio, é o curto e grosso que nos satisfaz.
Assim se explica o sucesso tanto do politicamente correto quanto do politicamente incorreto. Os dois simplificam o mundo. Os incorretos viram Dom Quixotes lutando contra moinhos de ventos transformados em monstros pelas suas próprias cartilhas pretinhas básicas. Inventaram o mito de que o mundo é dominado pelo politicamente correto, e assim sua cruzada fica mais heroica. Francisco Bosco identifica outro mito que justifica muita indignação pré-fabricada: “Parte-se do princípio de que existe uma prática cordial no debate intelectual brasileiro.” Então multiplicam-se os indignados anticordialidade dominante. É uma estratégia de marketing: faz sucesso em blogs e em cadernos culturais que acham que polêmica vende jornal ou atrai visitantes. Algumas frases do texto de Marcelo Coelho foram tão retuitadas (autocrítica?) que já se tornaram ditados populares contemporâneos. Por exemplo: “Ser ‘politicamente incorreto’, no Brasil de hoje, é motivo de orgulho. Todo pateta com pretensões à originalidade e à ironia toma a iniciativa de se dizer ‘incorreto’.” Não é possível ser mais preciso. Apenas acrescentaria: muitas vezes os corretos também pensam que o mundo é dominado por incorretos e querem contrariar o espírito dominante. Contrariar para fazer sucesso (“só para contrariar”), ser querido, ser amado, ser fofinho (há muita fofura indignada por aí).
Onde tudo isso começou? Seria fácil dizer: Paulo Francis. Mas ele também era uma consequência,
não a “causa” — mesmo com efeitos duradouros. Somos, sim, geração formada, direta ou indiretamente, por Paulo Francis — ou pior, pela caricatura de si mesmo que Paulo Francis inventou em seus últimos anos de colunista. Era divertido: esperar seu próximo texto para descobrir quem seria o espinafrado da vez. Até que aquilo ficou muito óbvio, e talvez por isso mesmo virou padrão, produção em série de jornalistas e blogueiros que acham charmoso não gostar de nada que acontece no Brasil, que ganham fama e tietes por serem indignados com tudo o que faz sucesso em nosso país, que deveria para sempre não ter jeito — se desse certo, do que iriam reclamar? Em seus textos, viramos tristes trópicos de verdade, cheios de exilados espirituais, que me dão enorme pena pois nenhum deles consegue construir carreiras sólidas nos lugares que veneram. Nem Paulo Francis conseguiu ser colaborador do “New York Review of Books”. Isso alimenta mais raiva. Mais indignação e maledicência. Como Francisco Bosco: tô fora. Nesta coluna falo bem do que acho bom, do que quero que dê certo. Totalmente pós-indignação.
Interessante perceber a coincidência, quando abri os jornais do dia 18: na “Folha de S. Paulo”, Marcelo Coelho escreveu brilhantemente sobre a moda do politicamente incorreto e, aqui no Segundo Caderno, Francisco Bosco lançou seu manifesto “tô fora” contra a busca desesperada, cada vez mais dominante em certo debate de ideias nacional, por polêmicas. Há tempos eu planejava um texto semelhante, comentando o mesmo fenômeno, pois considero os sucessos tanto do “politicamente incorreto” quanto das “polêmicas” sintomas de um problema mais profundo e triste.
Já esbarrei nesse assunto quando citei outra coluna da “Folha”, de Contardo Calligaris: “Ora, a indignação é a forma mais barata de inteligência: ela substitui a complexidade pela irritação dos humores.” Claro, conheço também o sucesso que o livro francês “Indignai-vos”, de Stéphane Hessel, tem feito mundo
afora. E sei que, no Brasil, há motivos de sobra para ficarmos indignados. Mas indignação não basta por si só, nem pode ser pensada como finalidade da ação política/ moral. Ela só faz sentido se for o início da ação, que crie soluções e novas maneiras de transformar o mundo. Quem abre o Twitter, ou quem lê cartas de leitores dos jornais, pensa que o Brasil é terra de indignados. Mas isso não quer dizer politização. A indignação brasileira atual muitas vezes é apenas o exercício da maledicência. Um jogo bobo: sou mais corajoso, nado contra a maré, pois falo mal de todo mundo. E tudo fica como era antes.
Há cada vez mais seminários e mesas redondas no Brasil. Muitos organizadores são bem-intencionados. Contudo, o espírito denunciado por Francisco Bosco (ele citou a seguinte recomendação de um mediador:
“Podem polemizar, detesto mesas em que há consenso, em que todos dizem a mesma coisa”) realmente anda impedindo que os debates se tornem produtivos, ou mesmo surpreendentes. Ninguém discute nada, ou aprofunda nenhuma “questão”. A moda é a do show indignado: o expositor abusa do estilo bombástico já testado com outras palestras, falando mal de qualquer “poderoso”. A plateia adora. O efeito é catártico. Apaziguador. Bater palmas é suficiente, dever cumprido. Não é preciso fazer mais nada, além dessa manifestação barulhenta de indignação “solidária”. Então, bater palmas funciona, no final das contas, como lavar as mãos: o que vem daqui para a frente não tem nada a ver conosco, é coisa para os políticos decidirem e cuidarem por nós. A indignação se torna o caminho mais fácil. Ninguém quer saber de discursos complexos, argumentações entediantes para se acompanhar, levando em conta pontos de vistas diferentes. O público fica contente com slogans pseudorrevolucionários, com tiradas engraçadas,
com frases destemperadas, do contra. A simplificação dá conta do nosso negócio, é o curto e grosso que nos satisfaz.
Assim se explica o sucesso tanto do politicamente correto quanto do politicamente incorreto. Os dois simplificam o mundo. Os incorretos viram Dom Quixotes lutando contra moinhos de ventos transformados em monstros pelas suas próprias cartilhas pretinhas básicas. Inventaram o mito de que o mundo é dominado pelo politicamente correto, e assim sua cruzada fica mais heroica. Francisco Bosco identifica outro mito que justifica muita indignação pré-fabricada: “Parte-se do princípio de que existe uma prática cordial no debate intelectual brasileiro.” Então multiplicam-se os indignados anticordialidade dominante. É uma estratégia de marketing: faz sucesso em blogs e em cadernos culturais que acham que polêmica vende jornal ou atrai visitantes. Algumas frases do texto de Marcelo Coelho foram tão retuitadas (autocrítica?) que já se tornaram ditados populares contemporâneos. Por exemplo: “Ser ‘politicamente incorreto’, no Brasil de hoje, é motivo de orgulho. Todo pateta com pretensões à originalidade e à ironia toma a iniciativa de se dizer ‘incorreto’.” Não é possível ser mais preciso. Apenas acrescentaria: muitas vezes os corretos também pensam que o mundo é dominado por incorretos e querem contrariar o espírito dominante. Contrariar para fazer sucesso (“só para contrariar”), ser querido, ser amado, ser fofinho (há muita fofura indignada por aí).
Onde tudo isso começou? Seria fácil dizer: Paulo Francis. Mas ele também era uma consequência,
não a “causa” — mesmo com efeitos duradouros. Somos, sim, geração formada, direta ou indiretamente, por Paulo Francis — ou pior, pela caricatura de si mesmo que Paulo Francis inventou em seus últimos anos de colunista. Era divertido: esperar seu próximo texto para descobrir quem seria o espinafrado da vez. Até que aquilo ficou muito óbvio, e talvez por isso mesmo virou padrão, produção em série de jornalistas e blogueiros que acham charmoso não gostar de nada que acontece no Brasil, que ganham fama e tietes por serem indignados com tudo o que faz sucesso em nosso país, que deveria para sempre não ter jeito — se desse certo, do que iriam reclamar? Em seus textos, viramos tristes trópicos de verdade, cheios de exilados espirituais, que me dão enorme pena pois nenhum deles consegue construir carreiras sólidas nos lugares que veneram. Nem Paulo Francis conseguiu ser colaborador do “New York Review of Books”. Isso alimenta mais raiva. Mais indignação e maledicência. Como Francisco Bosco: tô fora. Nesta coluna falo bem do que acho bom, do que quero que dê certo. Totalmente pós-indignação.
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