Saiba mais sobre o filósofo alemão que construiu uma obra em que a felicidade é um tapa na cara do destino
texto: José Botelho - Revista Vida Simples
Tragicamente alegre e alegremente pessimista. Humano e rancoroso, generoso e turrão. Todos esses epítetos são aplicáveis ao filósofo alemão Arthur Schopenhauer - cuja obra brilhante e virulenta é um dos maiores tesouros literários da filosofia ocidental. Adorado por artistas, poetas, escritores e pensadores marginais - mas também espinafrado por outros filósofos e muitas vezes ignorado pelas academias-, ele deixou uma obra carregada de humorismo e amargura, piedade e maledicência, pessimismo e esperança.
Considerado por muitos o pai da angústia moderna, Schopenhauer já foi descrito - de forma simplista - como o sumo-sacerdote do niilismo destrutivo. Mas sua dura sabedoria é um vinho doce-amargo, temperado em igual medida pelas dores do mundo e pelas alegrias da arte e do conhecimento. Schopenhauer resumiu essa postura ambígua, que oscila entre o desespero existencial e a esperança possível, numa máxima latina: tristis in hilaritate, hilares in tristitia. O homem sábio, em outras palavras, deve ser "triste em sua alegria, alegre em sua tristeza". Para compreender a alegria trágica de Schopenhauer, antes é preciso deslindar sua apaixonada apologia do pessimismo.
Vontade Cega
Schopenhauer nasceu em 1788 na cidade livre de Dantzig, que hoje faz parte da Polônia com o nome de Gdansk. Sua mocidade foi marcada pelo misterioso suicídio do pai (que pulou da janela de casa quando Arthur tinha 18 anos) e pelas pendengas literárias e intelectuais com sua mãe. Famosa na época, Johanna Schopenhauer era uma coquete beletrista de temperamento frívolo. Autora de romances folhetinescos e açucarados, ela sentia verdadeira repulsa pelo gênio sombrio do filho, que, desde tenra idade, já era obcecado pelos aspectos mais espinhosos da existência. "Quando mais o conheço, mais difícil é para mim viver perto de você", escreveu Johanna em 1807. "Sua eterna mania de cismar sobre a estupidez do mundo e a miséria humana enchem minhas noites de pesadelos". E foi cismando teimosamente sobre as misérias do mundo que Schopenhauer escreveu, aos 30 anos, sua obra-prima: O Mundo como Vontade e Representação, publicado em 1818.
Espécie de bíblia do pessimismo, a obra colocou-se em rota de colisão com sua própria época e o transformou no filósofo maldito por excelência - um de seus admiradores, Friedrich Nietzche, mais tarde o apelidou de "cavaleiro solitário" da filosofia. O início do século 19 foi dominado pelas teorias otimistas de Friedrich Hegel, que considerava a Razão como o fundamento da existência. A História era vista como uma espécie de via ascendente: apesar de seus percalços, ela eventualmente conduziria a humanidade a um futuro de felicidade plena. Foi contra essa fortaleza de otimismo fácil que o jovem Schopenhauer dirigiu seus petardos agudos e contundentes. Para ele, a base do cosmo não é a Razão humana ou divina, mas uma força irracional e sem propósito: a Vontade, "mero ímpeto cego" que move todos os seres a uma existência fútil, sem sentido e essencialmente dolorosa. Em sua fome por existência, a Vontade gera, paradoxalmente, a destruição de suas próprias criaturas: por isso, somos seres feitos de desejos insaciáveis, em constante autoconflito. Em suma: "Toda vida é sofrimento".
Para Schopenhauer, a História da humanidade não era um dos novelões faceiros e benevolentes que sua mãe publicava com grande sucesso (e que o jovem caturra detestava com todas as suas forças). Antes mesmo que o marxismo seduzisse os intelectuais europeus com promessas de um beatífico futuro de igualdade, Schopenhauer já chegara à conclusão de que todas as utopias - religiosas ou seculares - são contos da carochinha potencialmente perigosos. "Imaginemos, por um instante, que a humanidade fosse transportada a um país utópico, onde os pombos voem já assados, onde todo o alimento cresça do solo espontaneamente, onde cada homem encontre sua amada ideal e a conquiste sem qualquer dificuldade", ele escreveu em um de seus ensaios, com típico humor negro. "Ora, nesse país, muitos homens morreriam de tédio ou se enforcariam nos galhos das árvores, enquanto outros se dedicariam a lutar entre si, a se estrangular, a se assassinar uns aos outros". Se para alguns a existência humana é um melodrama com final feliz, para Schopenhauer ela é uma tragédia grega.
Mas recordemos: segundo Aristóteles, a tragédia é aquele gênero que provoca terror e piedade em sua audiência, para em seguida levar à purificação das emoções. Em meio aos tormentos de um universo trágico, há sempre a promessa da catarse - o extase no meio do horror. Fiel a suas fontes clássicas, o messias do pessimismo elaborou uma filosofia desiludida, sim mas, mas também dotada de uma aura de consolo. Criticando o pessimismo exarcebado e egocêntrico dos suicidas, o filósofo nos recomenda uma bravura estóica frente aos tormentos da existência. "Não ceda à adversidade, mas marcha audaz contra ela", ele nos convoca solenemente. De certa forma, o adorável rabugento sugere que devemos rir - ou, pelo menos, sorrir - ainda que estejamos no meio do inferno. Aqui, a felicidade plena é impossível - mas o mesmo não vale para a alegria, excessão heróica e sempre desejável à sofrida regra da existência, e espécie de tapa de luva na cara do destino.
Hilaris in tristitia: conselho útil para uma época como a nossa, já saturada de horrores passados e à espera de minuciosos horrores futuros (que vão desde a metamorfose da Terra em uma panela de pressão superaquecida, povoada por seres famintos, até a possibilidade sempre presente de alguma estúpida hecatombe nuclear). Época que - com a excessão de alguns desatentos...- já perdeu suas ilusões em utopias sociais ou econômicas. O que fazer, quando nenhum paraíso parece convincente? A resposta talvez esteja no cálice de sabedoria amarga que Schopenhauer nos estende, com um piscar de olho zombeteiro. Perante um mundo desgovernado, o sábio deve adotar uma postura consciente das agruras da existência, mas atenta a cada possibilidade de alegria e pautada pela ética, fruto da compaixão universal - sentimento quase milagroso que permite ao indivíduo transcender sua própria dor e identificar-se com a dos outros. Sem esperanças de redenção absoluta, o homem sábio deve viver no presente, alegrando-se com as eventuais belezas da vida e suportando suas inevitáveis desgraças. Escreve Schopenhauer em seus Aforismos Para a Sabedoria de Vida. "Só o presente é verdadeiro e real... Por conseguinte, deveriamos dar-lhe uma acolhida jovial e fruir com consciência cada hora suportável e livre de contrariedades ou dores, em vez de turvá-la com expressões carrancudas acerca de esperanças malogradas... Quanto ao futuro, devemos pensar: isso repousa no colo dos deuses".
Além da prudência estóica, há outra nota de esperança na obra de Schopenhauer: a salvação pela arte e pelo conhecimento. Em tempos de tecnocracia e utilitarismo, em que as artes são constantemente enquadradas como ferramentas de marketing ou veículos para esta ou aquela ideologia política, vale a pena retomar as idéias desse amante sincero da poesia e da música (não por acaso, Schopenhauer é um dos filósofos favoritos de escritores e artistas desde o século 19). A arte, para o pensador, é a porta do êxtase - o caminho que nos liberta temporariamente da Vontade cega e nos permite ver o sofrimento humano com o olho neutro da estética. É um repertório de sentidos possíveis em um universo de absurdos. "Ainda que não houvesse mundo", ele escreveu, "poderia haver música". Mas a contemplação do belo, para ser transcendente, deve ser desinteressada. Em outras palavras: deveríamos ler poesias, apreciar pinturas e escutar sinfonias não por obrigação curricular ou vaidade intelectual - como tantos fazem hoje em dia-, mas pela busca do deleite que nos cabe, em um mundo já suficientemente cheio de tédio e de misérias. Uma relação menos neurótica e mais erótica com a cultura é um dos bálsamos receitados por Schopenhauer para as feridas incuráveis da existência.
Gênio solitário
Outra lição deixada por Schopenhauer foi sua própria vida - uma eloquente ilustração de que a teimosia compensa e de que o inconformismo é uma boa luta.
Arauto do pensamento individual, Schopenhauer foi um filósofo sem papas na língua, e pagou um preço alto por isso. Na época de sua publicação, O Mundo como Vontade e Representação vendeu menos de 100 exemplares - e a carreira universitária de seu autor jamais decolou. Em 1820, ele conseguiu uma cátedra na Universidade de Berlim e, por pura implicância, suas aulas eram nos mesmos horários ocupados pelas conferências de Hegel, seu arqui-inimigo intelectual. Em vez de um duelo de titâs, o que se seguiu foi um dos grandes fiascos da história da filosofia: enquanto as preleções otimistas de Hegel lotaram aulas, as aulas de Schopenhauer atraíam menos de dez alunos.
Nos anos seguintes, Schopenhauer se tornou um inimigo declarado do mundo universitário. Em páginas deliciosamente azedas, o cavaleiro solitário fustigou os eruditos profissionais - em sua opinião, pensadores "assalariados" que passam a vida citando opiniões alheias, sem jamais desenvolver um pensamento próprio. "A peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelos alheios, porque carecem de cabelos próprios", escreve ele, com característica falta de condescendência, em Sobre a Erudição e os Eruditos. Vale esclarecer: o que Schopenhauer criticava não era a erudição em si mesma, mas o monopólio do conhecimento por patotas acadêmicas. O que esse gênio mal-humorado valorizava acima de tudo era aquela figura rara quase milagrosa, que ele próprio encarnou: o pensador independente.
Independente e solitário, Schopenhauer passou os últimos anos de sua vida em Frankfurt, morando com seu cachorro de estimação, o poodle "Atma"-"Alma do mundo" em sânscrito-, cuja companhia achava preferível à da maioria dos seres humanos. Apesar da indiferença do público, ele continuou estudando e escrevendo com furor e gana (graças a um gordo estipêndio familiar, nunca precisou trabalhar para viver...). E o sucesso finalmente veio em 1851, com a publicação de Parerga e Paralipomena, uma coletânea de ensaios sobre temas variados como as mulheres, o suicício e a poluição sonora (traço da vida moderna que, já naquela época, o filósofo achava insuportável). O estilo ameno e epigramático dessas reflexões granjeou-lhe uma fama tardia, mas duradoura. Nas décadas seguintes, enquanto a filosofia hegeliana entrava em declínio, a obra completa de Schopenhauer seria redescoberta por consecutivas gerações de artistas e desajustados. As idéias agridoces desse misantropo desgrenhado, alérgico à estupidez alheia, mas dotado de infinita compaixão pelas dores universais, entrariam definitivamente nas veias do Ocidente. Os ecos de sua obra se estendem de Nietzche a Freud e Wittgenstein, e isso sem falar na influência colossal que exerceu sobre gente do calibre de Richard Wagner, Proust, Joseph Conrad e Borges. Este último, certa vez, disse o seguinte sobre seu filósofo favorito: "Creio que ele nos deu, de algum modo, a chave para decifrar o mundo".
O teimoso cavaleiro andante da filosofia tinha plena consciência de que, após tantas derrotas, ele finalmente venceria a peleja contra seu próprio tempo. Pouco antes de morrer, alguém lhe perguntou onde gostaria de ser enterrado. O hábil frasista retrucou: "Em qualquer lugar. A posteridade me encontrará".