Ivan Martins
Num dos piores anos da Grande Depressão, 1934, o presidente americano Franklin Delano Roosevelt recebeu na Casa Branca um economista inglês de 51 anos que vinha precedido da fama de gênio. Alto e curvado, olhos de um azul transparente, John Maynard Keynes falou por mais de uma hora com Roosevelt. A despeito de seu charme e de sua famosa eloqüência, Keynes causou péssima impressão. “Não entendi uma palavra do que ele disse”, afirmou Roosevelt. “Esse sujeito é matemático, não economista”. Seu interlocutor, autor de livros famosos e presidente do comitê de economistas britânicos que assessorava o governo de Sua Majestade, também não gostou da conversa. “Pensei que o presidente fosse alfabetizado em economia”, disse.
Quatro anos depois, quando a economia americana mergulhava mais fundo no desemprego, e Roosevelt já esgotara seus recursos para tentar reativá-la, restou recorrer às idéias “daquele matemático” de Cambridge. O desemprego caiu então de 17% para 1%, e o mundo começou a viver aquilo que a revista Time definiria – 27 anos depois, em dezembro de 1965 – como a “mais longa, mensurável e ampla prosperidade da História”. “Agora, somos todos keynesianos”, afirmou na ocasião para a Time o economista americano Milton Friedman, ironicamente o maior crítico das idéias de Keynes.
Aquele período de prosperidade só seria superado pela seqüência recente de 30 anos ininterruptos de crescimento contínuo, abalado pela crise atual. Esse período foi regido pelo pensamento liberal de Friedman. Keynes e Friedman – cuja divergência central é a visão sobre o papel do Estado na economia capitalista – foram os dois economistas mais influentes do século passado. “A crítica de Friedman a Keynes se tornou tão influente porque identificou corretamente os pontos fracos do keynesianismo”, diz o economista Paul Krugman, agraciado na semana passada com o Prêmio Nobel (leia o texto de Krugman sobre Friedman e Keynes). Nas últimas semanas, em razão da crise financeira, as idéias de Keynes, que haviam sido empurradas para a periferia, pareciam estar de volta. Assim como Roosevelt, o governo de George W. Bush concluiu, relutante, que seria necessário intervir para resolver a crise.
Keynes pensava, escrevia e falava com uma inteligência que impressionou seus contemporâneos. Filho de um professor universitário, ele nasceu em Cambridge em 1883 – ano da morte de Karl Marx. Passou a vida entre a elite intelectual e política do Reino Unido. Fez parte de um dos mais célebres e inovadores grupos intelectuais do século XX, conhecido como grupo de Bloomsbury, o bairro londrino onde se reuniam. Erguido em torno de duas irmãs, a pintora Vanessa Bell e a escritora Virginia Woolf, o grupo contava ainda com os pintores Duncan Grant e Roger Fry, os ensaístas Lytton Strachey, Clive Bell e Leonard Woolf e o romancista E.M. Forster. Era um grupo peculiar nas idéias estéticas e no comportamento. Casos amorosos entre seus integrantes – hétero ou homossexuais – eram tão comuns quanto a produção de idéias, quadros ou livros geniais. Keynes colecionava obras de arte e amantes homossexuais, mas casou-se com uma bailarina russa. Ao morrer, em 1946, dizia ter um único arrependimento: não ter bebido mais champanhe.
Keynes ao centro, em Bretton Woods, como negociador britânico. Ele ajudou a definir o rosto da economia global por 30 anosEle se definia como um “economista burguês”, um “médico do capitalismo”. Brilhante, ganhou 2 milhões de libras, uma fortuna na década de 1930, especulando com commodities e moedas. Dizia ter desprezo pelo dinheiro e por banqueiros. Admitia a necessidade do trabalho “desde que não seja mais que três dias por semana”. Foi executivo de uma companhia de seguros e diretor de empresas jornalísticas. A City londrina parava para esperar sua previsão anual sobre o comportamento dos mercados.
Sua obra compõe-se de 29 volumes impressos e uma atuação pública notável. Em seu livro mais famoso – A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda –, uma obra tão pouco compreendida quanto admirada, Keynes concluía que era possível “operar” a economia capitalista mais ou menos como se controla uma máquina, mantendo-a sempre em ritmo acelerado para garantir o pleno emprego e o pleno uso de recursos. “O remédio para os ciclos econômicos não é abolir os booms e nos manter permanentemente em semi-recessão”, dizia Keynes. “Mas sim abolir as recessões e manter a economia permanentemente em quase-boom”.
Keynes acreditava que, durante as recessões, o governo deveria cortar impostos, baixar juros e gastar, sem se preocupar com o déficit público. Em momentos de contração, dizia Keynes, o setor privado não é capaz de investir. Se os mercados estão reticentes, as empresas reduzem gastos e põem gente na rua. Mas, se todas fizerem isso ao mesmo tempo, o consumo desaba. Isso justifica novos cortes de investimento e aprofunda a recessão. É um ciclo vicioso, que, segundo Keynes, só pode ser rompido pela ação do Estado. Ele deve, segundo Keynes, pôr dinheiro em circulação, estimular a produção e o consumo e tomar iniciativa nas áreas abandonadas pela iniciativa privada. É o que os governos do mundo todo estão fazendo há duas semanas.
Keynes foi responsável pelo sucesso das negociações que moldaram o mundo econômico do pós-guerra. A criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, assim como os acordos monetários de Bretton Woods – eventos que ele influenciou como principal negociador britânico –, forneceram os alicerces da economia global até meados da década de 70, quando os Estados Unidos quebraram o acordo que mantinha o ouro como padrão monetário global. O fato de hoje, em meio à crise financeira, voltarem a clamar por uma espécie de governança global dos mercados é sinal da influência intelectual de Keynes.
Os críticos dizem que há uma severa limitação no keynesianismo. Ele pode ser eficiente para deter as crises, mas não para administrar a prosperidade. Na prática, a idéia de cavalgar o capitalismo e domesticá-lo por meio do fluxo da moeda e do investimento público terminou com inflação e estagnação nos anos 70. As idéias de Keynes se revelaram uma utopia. Há duas semanas, com a crise global, o médico do capitalismo voltou à cena. O tempo que permanecerá no palco dependerá de quanto a saúde da economia vai melhorar com os remédios que ele prescreveu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário